O Gene Egoísta
Richard Dawkins

 

O argumento deste livro é que nós, e todos os outros animais, somos máquinas criadas pelos nossos genes. Nossos genes sobreviveram — em alguns casos, por milhões de anos — num mundo altamente competitivo. Isso nos permite esperar deles algumas qualidades. Sustentarei a idéia de que uma qualidade predominante que se pode esperar de um gene bem-sucedido é o egoísmo implacável. Em geral o egoísmo do gene originará um comportamento individual egoísta. No entanto, tal como veremos, existem circunstâncias especiais em que um gene pode atingir mais efetivamente seus próprios objetivos egoístas cultivando uma forma limitada de altruísmo, que se manifesta no nível do comportamento individual.

replicadores → genes → organismos‑máquinas → estratégias comportamentais → cultura‑memética → ambiente modulado pelo gene

cada degrau solidamente apoiado no anterior para que a tese gene‑cêntrica pareça inevitável ao fim da leitura.

Sumário

Vocabulário

Erros sistemáticos são conhecidos como vieses, e se repetem de forma previsível em circunstâncias particulares.

Parte 1

Por que as pessoas existem?

A vida inteligente de um planeta atinge a maioridade no momento em que compreende pela primeira vez a razão de sua própria existência. Se criaturas superiores vindas do espaço um dia visitarem a Terra, a primeira pergunta que farão, de modo a avaliar o nível da nossa civilização, será: “Eles já descobriram a evolução?”. Os seres vivos já existiam na Terra há mais de 3 bilhões de anos, sem ter a menor idéia do porquê, antes que finalmente a verdade ocorresse a um deles. O seu nome era Charles Darwin. Não precisamos mais recorrer à superstição quando confrontados com questões profundas como as seguintes: “Há um sentido para a vida?”; “Paraque existimos?”; “O que é o homem?”. Depois de formular a última dessas perguntas, o eminente zoólogo G. G. Simpson declarou: “Aquilo que quero esclarecer agora é que todas as tentativas de responder a esta pergunta feitas antes de 1859 são totalmente desprovidas de valor e que estaremos em melhor posição se simplesmente as ignorarmos por completo”

A filosofia e outras disciplinas conhecidas como “humanidades” continuam a ser ensinadas quase como se Darwin nunca tivesse existido. Não há dúvida de que isso se modificará com o tempo. Seja como for, este livro não pretende representar uma defesa geral do darwinismo. Na verdade, ele se propõe a explorar as conseqüências da teoria da evolução em relação a um problema específico. O meu propósito é examinar a biologia do egoísmo e do altruísmo.

Para além de seu interesse acadêmico, a importância humana desta questão é óbvia. Ela toca de perto todos os aspectos da nossa vida social, o nosso amor e o nosso ódio, a luta e a cooperação, o dar e o roubar, a nossa ganância e a nossa generosidade. O problema com a mior parte dos livros é que seus autores erraram, total e completamente. E erraram porque não entenderam como a evolução opera. Eles supuseram que o importante na evolução é o bem da espécie (ou do grupo), em vez do bem do indivíduo (ou do gene).

O argumento deste livro é que nós, e todos os outros animais, somos máquinas criadas pelos nossos genes. Nossos genes sobreviveram — em alguns casos, por milhões de anos — num mundo altamente competitivo. Isso nos permite esperar deles algumas qualidades. Sustentarei a idéia de que uma qualidade predominante que se pode esperar de um gene bem-sucedido é o egoísmo implacável. Em geral o egoísmo do gene originará um comportamento individual egoísta. No entanto, tal como veremos, existem circunstâncias especiais em que um gene pode atingir mais efetivamente seus próprios objetivos egoístas cultivando uma forma limitada de altruísmo, que se manifesta no nível do comportamento individual.

Um aviso de que, se o leitor desejar, como eu, construir uma sociedade em que os indivíduos cooperem generosa e desinteressadamente para o bem-estar comum, ele não deve esperar grande ajuda por parte da natureza biológica. Tratemos então de ensinar a generosidade e o altruísmo, porque nascemos egoístas. Tratemos de compreender o que pretendem os nossos próprios genes egoístas, pois só assim teremos alguma chance de perturbar os seus desígnios, algo que nenhuma outra espécie jamais aspirou fazer.

Se examinarmos o modo como a seleção natural opera, ele parece sugerir que qualquer coisa que tenha evoluído por meio da seleção natural deve ser egoísta. Portanto, é de esperar que, ao observarmos o comportamento dos babuínos, dos seres humanos e de todas as outras criaturas vivas, descobriremos que se trata de um comportamento egoísta.

Uma entidade, como um babuíno, por exemplo, será considerada altruísta se ela se comportar de forma a aumentar o bem-estar de outra entidade semelhante, com prejuízo de si mesma. O comportamento egoísta é aquele que tem exatamente o efeito oposto. O “bem-estar” é definido como “probabilidade de sobrevivência”, ainda que o efeito sobre as expectativas reais de vida e de morte seja tão pequeno a ponto de parecer desprezível. Uma das conseqüências mais surpreendentes da teoria darwiniana é que mesmo as influências diminutas, aparentemente triviais, podem ter sobre as probabilidades de sobrevivência um impacto decisivo na evolução. Isso se deve à enorme quantidade de tempo disponível para que tais influências revelem seus efeitos.

Grande parte da vida de um animal é dedicada à reprodução, e quase todos os atos de autossacrifício altruísta observados na natureza são realizados pelos pais em relação aos seus descendentes. A “perpetuação da espécie” é um eufemismo comum de reprodução e é, sem dúvida, uma conseqüência dela. Não é preciso mais do que uma ligeira distorção da lógica para deduzirmos que a “função” da reprodução é “servir” à perpetuação da espécie. A partir daí, é suficiente uma pequena escorregadela para que se conclua que os animais, em geral, se comportarão de forma a favorecer a perpetuação da espécie. O altruísmo em relação aos demais membros da espécie parece converter-se, assim, numa conseqüência natural.

A resposta imediata do adepto da “seleção individual” ao argumento apresentado poderia ser mais ou menos como segue. Mesmo no grupo de altruístas haverá, quase certamente, uma minoria dissidente que se recusará a fazer qualquer sacrifício. Se existir um único rebelde egoísta, pronto a explorar o altruísmo dos restantes, ele terá, por definição, mais probabilidade do que os outros de sobreviver e de procriar. Cada um dos seus filhos tenderá a herdar seus traços egoístas. Após várias gerações dessa seleção natural, o “grupo de altruístas” será dominado pelos indivíduos egoístas e desse grupo se tornará indistinguível. Mesmo admitindo o acaso improvável da existência inicial de grupos altruístas puros, sem nenhum indivíduo rebelde, é muito difícil antever o que seria capaz de impedir a migração de indivíduos egoístas, provenientes de grupos egoístas vizinhos e, por casamento cruzado, a contaminação da pureza dos grupos altruístas.

O adepto da seleção individual admitiria que os grupos realmente desaparecem e que a sua extinção ou não pode ser influenciada pelo comportamento dos indivíduos no grupo. Ele poderia até mesmo admitir que, se os indivíduos de somente um grupo tivessem o dom da previsão, veriam que o melhor para eles, no longo prazo, seria refrear a sua avidez egoísta, de modo a evitar a destruição de todo o grupo. Quantas vezes, nos últimos anos, isso foi dito aos trabalhadores britânicos? Entretanto, a extinção do grupo é um processo lento, comparado à velocidade feroz da competição individual. Mesmo quando o grupo caminha lenta e inexoravelmente para o declínio, os indivíduos egoístas prosperam, no curto prazo, às expensas dos altruístas. Os cidadãos da Grã-Bretanha podem ou não ter o dom da previsão, mas a evolução é cega no que diz respeito ao futuro.

A minha convicção de que a melhor maneira de encarar a evolução é considerar que a seleção se dá no mais baixo de todos os níveis. Argumentarei que a unidade fundamental da seleção, e, portanto, do interesse próprio, não é a espécie, nem o grupo e, tampouco, num sentido estrito, o indivíduo, e sim o gene, a unidade da hereditariedade. O argumento leva tempo para ser desenvolvido e teremos de começar pelo princípio, pela própria origem da vida. 

Parte 2

Os Replicadores

A teoria da evolução por meio da seleção natural proposta por Darwin é satisfatória porque nos mostra uma forma pela qual a simplicidade poderia ter se transformado em complexidade, como os átomos desordenados poderiam ter se agrupado em estruturas cada vez mais complexas até que acabassem produzindo pessoas. Darwin nos fornece uma solução, a única solução plausível sugerida até hoje, para a profunda questão da nossa existência. Tentarei explicar essa grande teoria em termos mais gerais do que se costuma fazer, começando pelo momento anterior ao início da própria evolução.

A “sobrevivência do mais apto” de Darwin é, na realidade, um caso especial de uma lei mais geral, a lei da sobrevivência do estável. O universo é povoado por coisas estáveis. Uma coisa estável é uma aglomeração de átomos que seja suficientemente comum ou permanente para merecer um nome. Pode tratar-se de uma aglomeração única de átomos, como o Matterhorn [monte Cervino], que dura o tempo suficiente para valer a pena dar-lhe um nome. Ou pode ser uma classe de entidades, como as gotas de chuva, que se formam numa quantidade suficientemente alta para merecer uma denominação coletiva, ainda que cada uma delas tenha vida curta. As coisas que vemos ao nosso redor, e que julgamos que requerem uma explicação — as pedras, as galáxias, as ondas do mar —, são todas arranjos mais ou menos estáveis de átomos. As bolhas de sabão tendem a ser esféricas porque essa é uma configuração estável para as películas finas cheias de gás. Numa nave espacial, a água também é estável na forma de corpúsculos esféricos, mas na Terra, onde está sujeita à ação da gravidade, a superfície estável da água em repouso é plana e horizontal. Os cristais de sal de cozinha tendem a ser cúbicos porque essa é uma maneira estável de reunir íons de sódio e de cloreto. No sol, os átomos mais simples de todos, os átomos de hidrogênio, fundem-se para formar átomos de hélio porque, nas condições que ali predominam, a configuração do hélio é mais estável. Outros átomos, ainda mais complexos, estão se formando continuamente nas estrelas espalhadas por todo o universo desde o big bang, que, de acordo com a teoria prevalecente, deu origem ao universo. É daí que vêm, originalmente, os elementos do nosso mundo.

Algumas vezes, quando se encontram, os átomos se ligam uns aos outros por meio de reações químicas para formar as moléculas, que podem ser mais ou menos estáveis. Essas moléculas podem ser muito grandes. Um cristal como o diamante pode ser considerado uma única molécula — neste caso, uma molécula proverbialmente estável —, porém, ao mesmo tempo, uma molécula muito simples, já que a sua estrutura atômica interna é repetida indefinidamente. Nos organismos vivos modernos existem outras moléculas grandes que são altamente complexas, e a sua complexidade se evidencia em diversos níveis. A hemoglobina do nosso sangue é uma típica molécula de proteína. Ela é constituída por cadeias de moléculas menores, os aminoácidos, cada uma contendo algumas dúzias de átomos arranjados numa estrutura precisa. Na molécula da hemoglobina existem 574 moléculas de aminoácidos, as quais se organizam em quatro cadeias que se torcem umas sobre as outras para compor uma estrutura globular tridimensional de complexidade estonteante. O modelo da hemoglobina assemelha-se a um denso espinheiro. No entanto, ao contrário de um espinheiro de verdade, não se trata, na hemoglobina, de uma estrutura aproximada e casual, e sim de uma estrutura invariante e bem definida, repetida de maneira idêntica mais de 6 mil quintilhões de vezes no corpo humano normal, sem um único ramo ou voltinha fora do lugar. A forma precisa de uma molécula de proteína como a hemoglobina é estável no sentido em que duas cadeias constituídas pela mesma seqüência de aminoácidos tenderão, como duas molas, a adquirir a mesma configuração espiral tridimensional. Os “espinheiros” de hemoglobina se formam no nosso corpo, na sua configuração preferida, a uma velocidade aproximada de 400 trilhões por segundo, enquanto outros tantos são destruídos à mesma velocidade.

A hemoglobina é uma molécula recente, usada para ilustrar o princípio de que os átomos tendem a se arranjar em configurações estáveis. A questão relevante aqui é que, antes do surgimento da vida na Terra, uma forma rudimentar de evolução das moléculas poderia ter ocorrido através dos processos físicos e químicos comuns. Não há necessidade de pensarmos em desígnio, propósito ou direcionalidade. Se um grupo de átomos, na presença de energia, se organizar numa configuração estável, tenderá a manter-se nesse estado. A primeira seleção natural se deu simplesmente pela seleção das formas estáveis e a rejeição das instáveis. Não há mistério algum. Por definição, tinha de acontecer assim.

É claro que não se pode concluir disso que seja possível explicar a existência de entidades tão complexas como o homem lançando mão, apenas e exatamente, dos mesmos princípios. De nada adianta pegar o número exato de átomos, misturá-los todos e neles aplicar alguma forma de energia externa até que se arranjem na configuração correta e então, zás, eis que surge Adão! Podemos produzir, dessa maneira, uma molécula constituída de umas poucas dúzias de átomos, mas um homem consiste em bem mais de 1 octilhão de átomos. Para tentar fazer um homem, teríamos de trabalhar na nossa coqueteleira bioquímica durante um período de tempo tão longo que a idade inteira do universo pareceria um piscar de olhos e, mesmo assim, não iríamos conseguir. É aí que a teoria de Darwin, na sua forma mais geral, surge em nosso auxílio. Ela assume o controle justamente no ponto em que a história da lenta formação das moléculas sai de cena.

Não sabemos que matérias-primas químicas eram abundantes na Terra antes do aparecimento da vida, contudo entre as mais plausíveis encontram-se a água, o dióxido de carbono, o metano e a amônia: todos compostos simples que, sabemos, estão presentes em pelo menos alguns dos outros planetas do nosso sistema solar. Os químicos têm tentado imitar as condições químicas da Terra em seus primórdios. Eles colocam essas substâncias simples num frasco, aplicando-lhes uma fonte de energia como a luz ultravioleta ou descargas elétricas — uma simulação artificial dos relâmpagos primordiais. Depois de algumas semanas fazendo isso, algo interessante é descoberto no interior do frasco: um caldo ralo amarronzado com um grande número de moléculas mais complexas do que as originalmente colocadas ali. Em particular, têm sido encontrados aminoácidos — os blocos de construção de que são feitas as proteínas, uma das duas grandes classes de moléculas biológicas. Antes de essas experiências terem sido realizadas, a ocorrência natural de aminoácidos seria interpretada como um sinal da presença de vida. Se tivesse sido detectada, por exemplo, em Marte, a vida naquele planeta teria parecido uma quase-certeza. Hoje, entretanto, a existência espontânea de aminoácidos implica apenas a presença de alguns gases simples na atmosfera e de alguns vulcões, luz solar ou tempestades. Mais recentemente, as simulações laboratoriais das condições químicas da Terra antes do surgimento da vida já produziram substâncias orgânicas chamadas purinas e pirimidinas. Estas são os blocos de construção da molécula genética, o próprio DNA.

Processos análogos aos mencionados acima devem ter dado origem à “sopa primordial” que biólogos e químicos acreditam ter constituído os mares de 3 a 4 bilhões de anos atrás. As substâncias orgânicas concentravam-se em certos lugares, talvez na espuma que secava nas margens ou em pequenas gotículas em suspensão. Sob a influência posterior de energia, como a luz ultravioleta emanada pelo Sol, elas se combinavam em moléculas maiores. Hoje em dia, moléculas orgânicas grandes não durariam tempo suficiente para serem notadas: seriam rapidamente absorvidas e desintegradas pelas bactérias ou por outros seres vivos. Mas as bactérias e todos nós só aparecemos mais tarde, de tal maneira que, naqueles tempos, as grandes moléculas orgânicas podiam flutuar à deriva, sem serem molestadas, em meio ao caldo que se tornava cada vez mais denso.

Em algum momento formou-se, por acidente, uma molécula particularmente notável. Vamos
chamá-la de o Replicador. Não é preciso que ela tenha sido a maior ou a mais complexa molécula
existente, porém ela tinha uma propriedade extraordinária: a capacidade de criar cópias de si mesma.

Este pode parecer um tipo de acidente cuja ocorrência é muito pouco provável. E foi, de fato. Foi uma ocorrência extremamente improvável. Durante a vida de um homem, acontecimentos assim tão improváveis podem ser considerados, em termos práticos, impossíveis. É por isso que nunca ganharemos o primeiro prêmio na loteria. Entretanto, nas nossas estimativas humanas sobre o que é ou não provável, não estamos habituados a lidar com centenas de milhões de anos. Se apostássemos na loteria todas as semanas durante 100 milhões de anos, é muito provável que  ganhássemos o primeiro prêmio em diversas ocasiões.

 Na realidade, uma molécula que seja capaz de produzir cópias de si mesma não é algo tão difícil de
imaginar quanto parece à primeira vista, e só era preciso que ela aparecesse uma única vez. Pense no
replicador como uma matriz ou um modelo padrão. Imagine-o como uma molécula grande,
constituída por uma cadeia complexa de vários tipos de blocos moleculares. Esses pequenos blocos de
construção encontravam-se abundantemente disponíveis no caldo em que flutuava o replicador. Agora
suponha que cada bloco apresenta afinidade com outros blocos do mesmo tipo. Então, sempre que um
bloco, vindo do caldo, se encontrar com uma parte do replicador com a qual tenha afinidade, tenderá
a aderir-se a ele. Os blocos que se ligam desse modo se arranjarão, automaticamente, numa seqüência
idêntica à do próprio replicador. É fácil, portanto, imaginá-los se juntando para constituir uma cadeia
estável semelhante ao replicador original. Esse processo poderia prosseguir como um empilhamento
progressivo, camada sobre camada. É assim que se formam os cristais. Por outro lado, as duas cadeias
poderiam se separar e, nesse caso, passaríamos a ter dois replicadores, e cada um deles continuaria a
produzir outras cópias de si mesmo.

Uma possibilidade mais complexa é de que cada bloco tenha afinidade, não com os outros blocos do mesmo tipo, mas, reciprocamente, com outro tipo em particular. Então, o replicador atuaria como um modelo não para uma cópia idêntica a ele, e sim para uma espécie de “negativo”, que, por sua vez, originaria uma nova cópia negativa, que corresponderia ao positivo original. Para os nossos propósitos, não tem grande importância saber se o processo de replicação original era positivo-negativo ou positivo-positivo, embora seja interessante notar que os equivalentes modernos do primeiro replicador, as moléculas de DNA, usam um processo de replicação positivo-negativo. O que realmente importa é que, de súbito, uma nova forma de “estabilidade” apareceu no mundo. Antes disso, provavelmente, não havia nenhum tipo particular de molécula complexa que fosse muito abundante na sopa, já que cada um deles dependia de que os blocos moleculares se dispusessem,  acidentalmente, em tipos específicos de configuração. Mas, quando surgiu, o replicador deve ter logo espalhado suas cópias pelo mar, até que os blocos menores se tornassem um recurso escasso e as outras grandes moléculas começassem a se formar cada vez mais raramente.

Ao que parece, chegamos assim a uma numerosa população de réplicas idênticas. Agora, porém, temos de mencionar uma propriedade importante de qualquer processo de replicação: ele não é perfeito. Ocorrem erros nesse processo. Espero que não haja erros de impressão neste livro, mas, se fizermos um exame cuidadoso, é bem possível que encontremos um ou dois. É provável que eles não distorçam seriamente o sentido das frases, porque serão erros de “primeira geração”. Mas, imagine os tempos anteriores à imprensa, quando livros como os Evangelhos eram copiados à mão. Todos os escribas, por mais cuidadosos que fossem, cometiam um erro ou outro, e alguns não conseguiam resistir à tentação de fazer pequenas “melhorias” no texto. Se todos produzissem suas cópias a partir de uma única matriz original, não haveria deturpações significativas de sentido. No entanto, se as cópias fossem feitas a partir de outras cópias, que, por sua vez, tivessem sido feitas a partir de cópias também, os erros começariam a se acumular e se tornariam mais sérios. Tendemos a considerar ruins as cópias imprecisas e, no caso dos documentos humanos, é difícil pensar em exemplos nos quais os erros possam ser vistos como benefícios. Quanto aos eruditos da Septuaginta,* o mínimo que se pode dizer é que eles deram início a algo de profunda importância quando traduziram, incorretamente, a expressão “jovem mulher”, em hebraico, pela palavra “virgem” em grego, originando a profecia “Eis que uma virgem conceberá e dará à luz um filho…”.2 De todo modo, como veremos, a produção de uma cópia imprecisa do replicador biológico pode, num sentido real, originar um melhoramento, e foi essencial para a evolução progressiva da vida que alguns erros tivessem ocorrido. Não sabemos com que grau de exatidão as moléculas replicadoras originais produziam suas cópias. Seus descendentes modernos, as moléculas de DNA, são extraordinariamente fiéis, se comparados com alguns processos de cópia humana do mais alto grau de fidelidade, mas, mesmo eles, de quando em quando, cometem erros, e são esses enganos, em última análise, que tornam possível a evolução.  Provavelmente os replicadores originais eram bem mais imprecisos, todavia o que importa é que podemos ter certeza de que os erros ocorriam e eram cumulativos.

À medida que se formavam e se propagavam cópias imperfeitas, a sopa primordial foi se enchendo, não de uma população de réplicas idênticas, e sim de diversas variedades de moléculas replicadoras, todas elas “descendentes” do mesmo ancestral. Seriam algumas variedades mais abundantes do que outras? É quase certo que sim. Algumas variedades seriam inerentemente mais estáveis do que outras. Certas moléculas, depois de formadas, teriam menos tendência do que outras a se decompor mais uma vez. Tais tipos se tornavam relativamente mais numerosos na sopa, não somente como conseqüência lógica e direta da sua “longevidade”, mas também porque teriam muito tempo disponível para produzir cópias de si mesmas. Desse modo, os replicadores de alta longevidade tenderiam a ser mais numerosos e, mantendo-se constante a influência de outros fatores, passaria a haver uma  tendência evolutiva” em direção a uma maior longevidade na população de moléculas.

Provavelmente, porém, os demais fatores não se mantiveram constantes. Assim, outra propriedade inerente a uma variedade de replicadores que deve ter assumido uma importância ainda maior na sua disseminação pela população foi a velocidade de replicação ou “fecundidade”. Se as moléculas replicadoras do tipo A fazem cópias de si mesmas, em média, uma vez por semana, ao passo que as moléculas do tipo B fazem cópias de si mesmas a cada hora, não é difícil prever que, em pouco tempo, as moléculas do tipo A serão superadas em número, ainda que “vivam” durante muito mais tempo do que as do tipo B. É provável que tenha havido, portanto, uma “tendência evolutiva” rumo ao aumento da “fecundidade” das moléculas na sopa primitiva. Uma terceira característica das moléculas replicadoras que teria sido favorecida pela seleção é a precisão da replicação. Se moléculas do tipo X e do tipo Y tiverem exatamente a mesma longevidade e se replicarem à mesma velocidade, mas houver, em média, a produção de um erro a cada dez replicações de X e a produção de um só erro a cada cem replicações de Y, é óbvio que as moléculas do tipo Y se tornarão muito mais numerosas. O contingente de moléculas X na população perderá não só os próprios “filhos” mutantes, como também seus descendentes, reais ou potenciais.

Se o leitor já contar com algum conhecimento sobre a evolução, é possível que lhe pareça haver algo de paradoxal na afirmação que acabo de fazer. Será possível conciliar a idéia de que os erros de replicação são um pré-requisito essencial para que a evolução ocorra com a afirmação de que a seleção natural favorece a produção de cópias de alta fidelidade? Eis a resposta: embora a evolução possa parecer, em algum sentido vago, uma “coisa boa”, especialmente levando em conta que nós somos um produto dela, na realidade não existe nada que “queira” evoluir. A evolução acontece, quer se queira, quer não, a despeito de todos os esforços dos replicadores (e, hoje em dia, dos genes).

Voltando ao caldo primordial, ele deve, portanto, ter sido povoado por algumas variedades de
moléculas estáveis; estáveis no sentido de as moléculas individuais durarem muito tempo, ou se
replicarem a uma grande velocidade, ou ainda se replicarem com alto grau de precisão. As tendências
evolutivas que favoreceram as três formas de estabilidade ocorreram no seguinte sentido: se tivéssemos
colhido amostras do caldo em dois momentos diferentes, a última delas conteria maior proporção das
variedades com elevada longevidade/fecundidade/fidelidade de cópia.

O próximo elo importante na nossa argumentação, um elo que o próprio Darwin sempre fez questão de sublinhar (embora estivesse falando sobre animais e plantas, e não sobre moléculas), é a competição. A sopa primordial não tinha capacidade de prover o sustento de um número infinito de moléculas replicadoras. Primeiro, porque as dimensões da Terra são finitas, mas outros fatores limitadores devem ter sido igualmente importantes. Na nossa descrição do replicador atuando como um modelo ou uma matriz, supusemos que ele se encontrava mergulhado numa sopa em que os blocos de construção, ou as moléculas pequenas, necessárias à produção de cópias, se encontravam abundantemente disponíveis. Mas, quando os replicadores se tornaram numerosos, os blocos de construção devem ter sido utilizados numa velocidade tão grande que acabaram por se tornar um recurso escasso e precioso. Diferentes variedades ou linhagens de replicadores devem ter competido por eles. Já analisamos os fatores que teriam levado ao aumento numérico de algumas dessas  linhagens ou tipos. Podemos agora concluir que as variedades menos favorecidas teriam com efeito se tornado menos numerosas por causa da competição, e que, finalmente, muitas delas devem ter se extinguido. As variedades de replicadores travaram uma luta pela existência. Elas não sabiam que estavam lutando, e nem se preocupavam com isso. A luta foi conduzida sem nenhum ressentimento. Na realidade, sem sentimentos de qualquer tipo. Entretanto, se tratava de uma luta, no sentido de que qualquer cópia imprecisa que resultasse num nível mais alto de estabilidade, ou numa nova forma de reduzir a estabilidade das suas rivais, era automaticamente preservada e multiplicada. O processo de melhoramento era cumulativo. As formas de aumentar a própria estabilidade e de diminuir a estabilidade das rivais tornaram-se mais elaboradas e mais eficientes. Alguns replicadores podem até mesmo ter “descoberto” como decompor quimicamente as moléculas das variedades rivais, usando os blocos construtores assim liberados para produzir as próprias cópias. Dessa maneira, esses “protocarnívoros” ao mesmo tempo obtinham alimento e removiam os rivais competidores. Outros replicadores talvez tenham descoberto jeitos de se proteger, quer quimicamente, quer erguendo uma barreira física de proteína à sua volta. Talvez as primeiras células vivas tenham surgido assim. Os replicadores começaram não apenas a existir, mas também a construir invólucros para si mesmos, veículos capazes de preservar sua existência. Os replicadores que sobreviveram foram aqueles que construíram máquinas de sobrevivência no interior das quais pudessem viver. De início, é provável que tais máquinas não passassem de um revestimento de proteção. No entanto, ganhar a vida ficou gradativamente mais difícil à medida que surgiam novos rivais com máquinas de sobrevivência melhores e mais eficientes. Essas máquinas se tornaram maiores e mais elaboradas, num processo cumulativo e progressivo.

Haveria um ponto final para o aperfeiçoamento gradual das técnicas e dos artifícios usados pelos
replicadores para assegurarem sua própria continuação no mundo? Eles contavam com muito, muito
tempo para esses aperfeiçoamentos. Que estranhas máquinas de autopreservação trariam consigo os
milênios seguintes? Qual seria o destino dos primeiros replicadores 4 bilhões de anos depois? Eles não
se extinguiram, pois são mestres antigos na arte de sobreviver. Mas não espere encontrá-los no mar,
flutuando à deriva; há muito que desistiram dessa liberdade altiva. Hoje em dia, eles se agrupam em
colônias imensas, seguros no interior de gigantescos e desajeitados robôs,3 guardados do mundo
exterior, e com ele se comunicam por caminhos indiretos e tortuosos, manipulando-o por controle
remoto. Eles estão dentro do leitor e de mim. Eles nos criaram, o nosso corpo e a nossa mente, e a
preservação deles é a razão última da nossa existência. Percorreram um longo caminho, esses
replicadores. Agora, respondem pelo nome de genes, e nós somos suas máquinas de sobrevivência.

Parte 3

Espirais Imortais

Nós somos máquinas de sobrevivência, mas esse “nós” não se restringe somente às pessoas. Aplica-se a todos os animais, plantas, bactérias e vírus. É muito difícil determinar o número total de máquinas de sobrevivência na Terra, e até mesmo o número total das espécies é algo que desconhecemos. Tomando-se apenas os insetos, estima-se que o número de espécies vivas gire em torno de 3 milhões, e o número de insetos individuais pode atingir mil quatrilhões.

Os diferentes tipos de máquina de sobrevivência apresentam grande variação na sua aparência exterior e também nos seus órgãos internos. Um polvo não se parece nada com um camundongo, e ambos são muito diferentes de um carvalho. No entanto, na sua estrutura química fundamental, eles são bastante semelhantes. Mais especificamente, os replicadores que eles carregam, os genes, são basicamente o mesmo tipo de molécula em todos nós — das bactérias aos elefantes. Somos todos máquinas de sobrevivência para o mesmo tipo de replicador — as moléculas chamadas de DNA —, porém existem muitas formas diferentes de sobreviver neste mundo e os replicadores construíram uma grande variedade de máquinas para explorar. Um macaco é uma máquina que preserva os genes em cima das árvores e um peixe é uma máquina que preserva os genes debaixo d’água. Existe até um pequeno verme que preserva os genes nas bolachas que servem de suporte aos copos de chope. O DNA trabalha de maneiras misteriosas.

Uma molécula de DNA é uma longa cadeia de blocos de construção, pequenas moléculas chamadas de nucleotídeos. Assim como as moléculas das proteínas são cadeias de aminoácidos, as moléculas de DNA são cadeias de nucleotídeos. Uma molécula de DNA é pequena demais para ser vista a olho nu, mas o seu formato exato foi engenhosamente determinado por processos indiretos. Ela consiste num par de cadeias de nucleotídeos, uma torcida sobre a outra numa espiral elegante: a “dupla hélice” ou a “espiral imortal”. Existem apenas quatro tipos de nucleotídeos diferentes, cujos nomes podem ser abreviados para A, T, C e G. Eles são os mesmos em todos os animais e plantas. O que varia é a ordem em que se alinham em seqüência. Um bloco de construção G de um homem é, em todos os detalhes, idêntico a um bloco de construção G de um caramujo. Entretanto, a seqüência dos blocos em um homem não só é diferente daquela de um caramujo, como também é diferente — embora em menor grau — da seqüência presente em todos os outros homens (exceto no caso especial de gêmeos idênticos).

O nosso DNA vive no interior do nosso corpo. Ele não está concentrado num lugar particular, mas distribuído pelas células. Existe aproximadamente 1 quatrilhão de células num corpo humano médio e, com algumas poucas exceções que podemos deixar de lado, cada uma delas contém uma cópia do DNA daquele corpo. Esse DNA pode ser considerado um conjunto de instruções sobre como construir um corpo, escrito no alfabeto A, T, C e G dos nucleotídeos. É como se em cada cômodo de um prédio gigantesco houvesse uma estante de livros contendo o projeto arquitetônico para o edifício todo. A “estante de livro” numa célula é chamada de núcleo. No homem, o projeto arquitetônico é composto por 46 volumes — o número é diferente em outras espécies. Os “volumes” são chamados de cromossomos. Visíveis ao microscópio, têm a aparência de fios compridos, ao longo dos quais os genes se dispõem, numa seqüência precisa. Não é fácil, e talvez nem faça muito sentido, estabelecer com precisão onde termina um gene e onde começa o seguinte.

As moléculas de DNA realizam duas coisas importantes. Em primeiro lugar, elas se replicam, ou seja, produzem cópias de si mesmas. Trata-se de um processo que acontece ininterruptamente desde o começo da vida, de tal maneira que, hoje, as moléculas de DNA são de fato muito eficientes nisso. Quando adultos, somos constituídos por cerca de 1 quatrilhão de células, contudo, quando fomos concebidos, éramos uma única célula dotada de uma cópia-mestra do plano do arquiteto. Essa célula dividiu-se em duas, e cada uma recebeu a sua cópia do plano. Divisões sucessivas elevaram o número de células para 4, 8, 16, 32, e assim por diante, até alcançar a casa dos trilhões. A cada divisão, os planos do DNA foram copiados fielmente, ou com pouquíssimos erros.

Uma coisa é falar na duplicação do DNA, mas, se o DNA é mesmo um conjunto de planos para construir um corpo, como é que tais planos são colocados em prática? Como é que se traduzem em estruturas no corpo? Essa questão me leva à segunda coisa importante feita pelo DNA: ele supervisiona de maneira indireta a fabricação de um tipo diferente de molécula — a proteína. A hemoglobina, que mencionei no capítulo anterior, é apenas um exemplo da enorme gama de moléculas de proteína. A mensagem codificada do DNA, escrita no alfabeto de quatro letras dos nucleotídeos, é traduzida, de forma mecânica e simples, em outro alfabeto. Tem-se então o alfabeto dos aminoácidos, que especifica como serão as moléculas de proteína.

Produzir proteínas pode parecer algo muito distante da tarefa de formar um corpo, mas, na realidade, é o primeiro passo nessa direção. As proteínas não somente constituem boa parte da estrutura física do corpo, como também exercem um controle sensível sobre todos os processos químicos no interior da célula, ativando-os ou desativando-os seletivamente, em momentos precisos e em lugares exatos. Os genes controlam indiretamente a produção dos corpos e a influência é estritamente de mão única: as características adquiridas não são herdadas. Não importa o grau de conhecimento e de sabedoria que um indivíduo venha a adquirir durante a vida — nem uma gota disso será transmitida aos seus filhos por meios genéticos. Cada nova geração começa da estaca zero. O corpo é a maneira de os genes se preservarem inalterados.

A importância evolutiva do fato de os genes controlarem o desenvolvimento embrionário reside no seguinte: isso significa que os genes são responsáveis, pelo menos em parte, pela própria sobrevivência no futuro, já que esta depende da eficiência dos corpos que eles habitam e ajudaram a construir. Houve um tempo em que a seleção natural consistia na sobrevivência diferencial dos replicadores que flutuavam livremente na sopa primordial. No presente, a seleção natural favorece os replicadores que se mostram competentes na construção de máquinas de sobrevivência, ou seja, os genes que se revelam habilidosos na arte de controlar o desenvolvimento embrionário. Nisso, os replicadores não são mais guiados pela consciência ou pelos propósitos do que já foram alguma vez. Os velhos processos de seleção automática entre moléculas rivais, de acordo com sua longevidade, fecundidade e fidelidade de cópia, continuam a operar tão cega e inescapavelmente como em épocas remotas. Os genes não contam com nenhuma capacidade de previsão. Não fazem planos de antemão. Eles simplesmente existem, alguns mais numerosos do que outros — e isso é tudo. No entanto, as qualidades que determinam a longevidade e a fecundidade de um gene já não são tão simples quanto foram no passado. De modo algum.

Em anos recentes — os últimos 600 milhões de anos ou algo próximo disso —, os replicadores alcançaram triunfos tecnológicos notáveis em relação às suas máquinas de sobrevivência, tais como o músculo, o coração e o olho (que evoluíram independentemente, por diversas vezes). Mas, antes disso, eles modificaram de maneira radical certas características fundamentais do seu modo de vida como replicadores, o que necessita ser compreendido para que possamos prosseguir com a nossa discussão.

O primeiro ponto a ser entendido em relação a um replicador moderno é que ele é altamente gregário. Uma máquina de sobrevivência é um veículo que contém não um gene apenas, mas muitos milhares deles. A fabricação de um corpo é um  empreendimento cooperativo de uma complexidade tão grande que é quase  impossível distinguir a contribuição de um gene da contribuição de um outro. Um gene em particular terá muitos efeitos diferentes em partes completamente diferentes do corpo. Uma determinada parte do corpo será influenciada por um amplo número de genes e o efeito de qualquer um deles dependerá da sua interação com muitos outros. Alguns comportam-se como genes mestres, controlando as operações de um grupo de outros genes. Por analogia, cada página do plano do arquiteto faz referência a muitas partes diferentes do edifício, e cada página faz sentido somente a partir das suas referências cruzadas com uma série de outras.

A reprodução sexual tem como efeito misturar e embaralhar os genes — o que significa que qualquer corpo individual é apenas um veículo temporário para uma combinação efêmera de genes. A combinação de genes que constitui um indivíduo pode ser efêmera, porém os genes em si são potencialmente muito duradouros. Seus caminhos se cruzam e voltam a se cruzar constantemente ao longo de gerações. Um gene pode ser considerado uma unidade que sobrevive através de um grande número de corpos individuais sucessivos.

Afirmei que os planos para construir um corpo humano se encontram descritos em minúcias em 46 volumes. Na realidade, essa foi uma simplificação excessiva. A verdade é mais bizarra. Os 46 cromossomos consistem em 23 pares de cromossomos. Poderíamos dizer que, arquivados no núcleo de cada célula, existem dois conjuntos alternativos dos 23 volumes do plano. Vamos chamá-los de Volume 1a e 1b, Volume 2a e 2b etc., até Volume 23a e 23b. Os números que utilizo para identificar os volumes, e, mais tarde, as páginas, são inteiramente arbitrários.

Cada um dos nossos cromossomos foi recebido intacto de um dos nossos pais, em cujo testículo ou ovário ele estava reunido. Os Volumes 1a, 2a, 3a… vieram, digamos, do nosso pai, e os Volumes 1b, 2b, 3b…, da nossa mãe. Embora na prática seja muito difícil, teoricamente poderíamos, com o auxílio de um microscópio, olhar para os 46 cromossomos existentes em qualquer célula e identificar os 23 que vieram do pai e os 23 que vieram da mãe.

Os dois cromossomos emparelhados não passam a vida toda em contato físico um com o outro, nem mesmo próximos um do outro. Em que sentido, então, eles constituem um “par”? No sentido em que cada volume originalmente provindo do pai pode ser considerado, página por página, como uma alternativa direta ao volume correspondente originalmente proveniente da mãe. Por exemplo, a Página 6 do Volume 13a e a página 6 do Volume 13b poderiam ser ambas “sobre” a cor dos olhos; talvez uma diga “azul”, enquanto a outra diz “castanho”.

Algumas vezes, as duas páginas alternativas são idênticas, mas há casos, como no nosso exemplo da cor dos olhos, em que são diferentes. Ora, se elas dão “recomendações” contraditórias, o que faz o corpo? A resposta varia. Às vezes, uma indicação prevalece sobre a outra. No exemplo da cor dos olhos que demos acima, a pessoa teria, na realidade, olhos castanhos: as instruções para fazer olhos azuis seriam ignoradas na construção do corpo, ainda que isso não impedisse a sua transmissão para as gerações seguintes. Um gene que é ignorado dessa maneira é chamado de recessivo. O oposto de um gene recessivo é um gene dominante. O gene para olhos castanhos é dominante sobre o gene para olhos azuis. Uma pessoa tem olhos azuis somente quando ambas as cópias da página relevante forem unânimes em recomendar olhos azuis. Com mais freqüência, quando dois genes alternativos não são idênticos, o resultado é alguma espécie de compromisso — o corpo é construído de acordo com um esquema intermediário, ou mesmo completamente diferente.

Os genes ficam confinados no interior das máquinas de sobrevivência. Nós recebemos os nossos genes no momento da concepção, e não há nada que possamos fazer a respeito. No entanto, há um sentido em que os genes da população em geral podem, no longo prazo, ser considerados um pool gênico* — expressão que é, na verdade, um termo técnico usado pelos geneticistas. O pool gênico é uma abstração conveniente, uma vez que o sexo mistura efetivamente os genes, embora o faça de forma cuidadosamente organizada. Para ser mais exato, ocorre alguma coisa semelhante ao arrancar e trocar de páginas e de maços de páginas do fichário, como veremos em breve.

Descrevi a divisão normal da célula em duas novas células-filhas, recebendo, cada uma, a cópia completa de todos os 46 cromossomos. Essa divisão celular normal é chamada de mitose. Mas existe outro tipo de divisão celular, denominada meiose. Ela ocorre somente na produção das células sexuais, os espermatozóides e os óvulos, os quais são as únicas células que contêm apenas 23 cromossomos, e não os 46.

Em algum momento formou-se, por acidente, uma molécula particularmente notável. Vamos
chamá-la de o Replicador. Não é preciso que ela tenha sido a maior ou a mais complexa molécula
existente, porém ela tinha uma propriedade extraordinária: a capacidade de criar cópias de si mesma.

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